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Em “Um certo banheiro público...”  dois grupos humanos,  transitam na mesma cidade periférica e revelam duras realidades Imperfeitos expõem entre falas, quase sonhos, quase lamentos. Tudo é exposto sem pudor, para subsistir no cotidiano das ruas de Porto Alegre, onde a moral é relativa; depende do ponto de vista.

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Confira um trecho do livro abaixo

A cadeira de plástico com o encosto na parede do banheiro sustenta João Cândido. Olhos fixos na porta, é um homem indignado: lavou o vaso sanitário fora do horário, e agora, o encontrou todo cagado. O mau cheiro invadiu os dois compartimentos conjugados. Os mictórios permaneciam razoavelmente limpos, apesar daquela tonalidade terrosa que ele tanto detestava. Levantou da cadeira com os ombros caídos, foi até o depósito buscar o balde, o desinfetante, as luvas e a escova com cabo longo. Enfiou a mangueira com força na torneira, esguichando água em jatos, furiosa, ensopando tudo. Insinuando-se feito cobra além da soleira da porta, escorreu nos ladrilhos, solta, procurando caminhos entre as pedras empoeiradas. Livre, esvaiu-se entre ervas daninhas, terra abaixo.

— Pouco importa —  pensou em voz alta, mesmo sabendo que estava só. — “Melhor isso, que aquela merda toda boiando” — concluiu, com a voz rouca.

Encheu o balde até a borda e jogou dentro do vaso. A água rodopiou e espirrou com força centrífuga para dentro do pequeno cilindro, levando junto pedaços de merda amarronzada. Ouviu-se finalmente um ruidoso ronco, e a massa disforme sumiu em redemoinho esgoto abaixo.

— Pronto! — exclamou aliviado, já sentindo no ar, o cheiro de hortelã do desinfetante.

 “O banheiro que eu cuido sempre foi o mais cheiroso da cidade, não será agora que vai feder a merda de estranhos”, concluiu em pensamento.

Nessa manhã, percebeu sensação incomum fora da ordem natural. Algo estranho subiu-lhe pelas pernas, arrastou-se lento pelo resto do corpo, as entranhas não se cabiam mais em gozo. Gozo com cheiro forte percorreu a espinha. Não é vertigem, mas parecia ser. O inexplicável acompanhou seus passos por onde quer que fosse. O sentimento de alegria balançou a alma desde que chegou ao trabalho. Era um homem desacostumado a luxos. Esse talvez fosse o motivo de ter lavado o sanitário antes das doze horas, quando o fluxo de pessoas diminuía. Nem parou para pensar no assunto. Cometeu o erro, e o trabalho havia dobrado. Foi viver aquele fio de felicidade e deu no que deu.

Passava o último pano seco, quando entraram dois homens negros, e foram diretos para os mictórios. Olhou levemente o mais baixo e gordo. O homem devia ter cinquenta e tantos anos, e seu aspecto era de uma pessoa abatida, seus ombros caíam do corpo, feito desgraça. O outro — mais jovem — ao contrário do primeiro, era ajeitado no vestir. Eles ficaram lado a lado, o mijo escorre, as cabeças levemente erguidas. Mijam e olham pela pequena janela basculante algo lá fora; compenetrados e quietos. O ruído da urina compassada persiste forte, grosso, e diminui aos poucos, até não mais se ouvir. Ele conhece bem esse ritmo. Também reconheceu o odor azedo de urina no ar.

Os dois homens se balançam sacudindo o pau, e rumaram para a saída, passando reto sem olhar para ele. Secou o suor da testa com o dorso da mão, observou enquanto eles sumiam no vão da porta, e foi concluir seu trabalho. Ao lavar os mictórios, notou que um deles continha um fino filete de sangue.

Guardou o material de limpeza. Sentou novamente na cadeira amarela. Aliviado. Tudo limpo. Agora é esperar sujarem novamente para ele entrar em ação. Sempre o mesmo todos os dias. O fardo de um zelador de banheiro. Sentia-se aliviado quando chegava o final da tarde, ajeitava a sua mochila e fechava as portas do banheiro, impecavelmente limpo. Depois, era respirar fumaça no ponto de ônibus, cheirar suor humano e aguentar a rabugice de gente mal-humorada. Os infelizes sempre se aglomeram no ponto de ônibus. Olhou o relógio. Faltam ainda muitas horas para terminar o expediente. Tirou do bolso o pacote de fumo, papel seda, fechou o cigarro calmamente. Acendeu e tragou. Do mesmo jeito suave, expeliu a fumaça que se desmanchou na sombra escura da praça.

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