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Imagem de Gregory Crewdson

Literatura | Poesia | Carla Diacov

Carla Diacov

em noites mais quentes fazemos chás

da primeira mansidão da noite quente

chás

ou então sopas

das folhas imóveis das pedras agitadas

mentira

é que faz-me falta ter o homem do adubo

é que faz-me falta ter a mulher do adubo

nas noites mais frias faríamos sorvetes

ou então mentiras

é que eu estou só

estou só

conheço tudo pelo tato

em noites amenas estou só e toco a campainha dos vizinhos e corro pra debaixo do lençol só

uns fios de estar só

uns fios de cabelo na boca e só

o peso dessa espera me puxa pra cama

a gravidade dessa espera faz-me mais

longa me joga aos postes

me empurra ao largo das borrachas infláveis

estou só

conheço tudo pelo tato

a mentira dos olhos ouvidos

o truque nos joelhos dos poetas

faríamos chás sorvetes mentiras sopas

***

bip - nascida para ser boa

 

caminhar pelas linhas dessa rua

numa tarde de feriado nacional

sequestrar o momento da pomba sobre o dedo da estátua

lamber o caminho do sorvete derretido derretendo

/saber que me olham com horror e gostar // ah como é bom ser terrível/

manchar a manga da camisa que você me deu

imaginar todas as possibilidades do pistache

com tudo do propósito

jogar a cabeça para o lado

encarar o casal de formigas

forjar um bico de desaprovação

sentir formigar os olhos na separação

/saber que me olham com horror e gostar // ah como é bom ser terrível/

voltar as linhas da rua

tocar seu telefone que toca sua secretária

eletrônica

oi sou eu

quando você foi embora

levou junto aquela camisa que me deu

procure por favor tenho reunião na quarta

e estou sem camisa para a ocasião e isso n bip

 

assistir ao último capítulo da novela

usar meus poderes para que Alberto morra

que Solange passe seus últimos minutos no

colo do cirurgião plástico e que as crianças

voltem para o orfanato

 

***

bip - you win again

mania

me chamava de mania

mania vem cá ver o leite da fervura

olha lá um acidente

um ônibus atropelou um hidrante para

não atropelar o gato preto

mania presta atenção

vê a senhora que desce cambaleando o busão?

bateu a cabeça no marido e

onde estrará o frango assado do domingo?

mania mania não me engana mania

olha bem olhado isso aqui é prêmio

estamos no quinto andar e temos um postal vivo

de uma sorte grande

a senhora continua cambaleando vai entrar aqui

já passou a portaria quer apostar?

mania corre ver o olho mágico a

senhora vai aparecer ali em cinco ou menos minutos

mania mania algum sinal da cambaleante?

entrou ao apartamento da frente

arrastando pingos de sangue da testa

mania vista aquele vestido pink e devolva a flor

de papel que te fiz

vamos levar o gato uma bacia um caderno três canetas

a mala com selos achocolatado lacrado maquiagem

diana ross dionne warwick bee gees

meu coração é seu você sabe

ó mania

mas a tarde terá dias demais para essas bobagens

 

e nos mudamos a contar selos e higienizar a testa

da viúva sem o frango do domingo

 

***

canja

 

em expansão

o ódio o amor

ainda que nada nada

em água em expansão

um banheiro em pleno ódio

onde jaze teu rosto quando

fundo aqui um amor cheio de ódio

o banheiro no ódio

você na banca de jornais

eu a ronronar alhos curry no banheiro

ódio e preces

um banheiro para o ódio que

o ódio que se come cru

abrir um banheiro para o ódio

ao ódio tudo porque o ódio

busca toda a satisfação o gosto de tudo

você na banca de jornais

eu na briga onde espero por ti

temperos gosto receitas

um deus faria o mesmo eu sei

pois deus faria o mesmo e fez

você na banca de revistas com ornatos para interiores

um banheiro todo para o ódio que te espera

há anos

há gerações

afio os punhos empunho a faca

como cortar um ovo meu deus do céu dos interiores

enquanto o jornaleiro faz lucro faço banheiro

quem nunca

jesus maria e josé

esfaqueou uma galinha

morta na pia borrada de creme dental

não sabe o que é o ódio de um amor tão macio

suculento

quem nunca meteu alhos pelos furos na bendita

quem nunca escorregou junto do choro da baba

quem nunca se machucou num tanto amor

quem nunca morreu no banheiro cravado no ódio da espera

amor

quem nunca leu nesses olhos a manchete ordinária

quem nunca amolou um garfo nos dentes do todo ódio

tamanho banheiro em pleno ódio

preces

um banheiro na cozinha em pleno ódio amor

em expansão

se esse banheiro fosse um cofre

se todo meu ódio fosse esse ladrão

 

***

hojendia

 

o mais suave do todo da brisa

entrava constantemente pela renda do vestido

ela pousava as mãos sobre os talheres

ela acontecia

como quando acontece

alguém morre de atropelamento

alguém morre com o coração atacado

ela cortava o filé vermelho

ela cortava

como quando corta o dia

faz duas noites inteiras

agora é bicho hojendia esfomeado

ela engole a vida em estado de hojendia

como quando engolia

cuida a casa como cuida a gula

dorme com a sede intacta

sonha com vida afiada

volta como volta a pluma preta no cru da penteadeira

o mais suave do todo da brisa desde

quando a renda

 

vez em quando o terno ciclo e acontece

quase todo o dia como quando corta o dia

plumando bocas em estado de hojendia no filé de mãe-da-lua

 

(onze noites inteiras)

 

***

.para Isaura.

 

a vênus de willendorf tem

a capacidade aberta e usada desde sempre

especialistas dizem

a vênus de willendorf

era usada em ritos de fertilidade

pequena usável

era usada como amuleto era

usada como objeto de limpeza abjeto

introduzido na

capacidade das vênus ordinárias era

usada como peso de segurar porta aberta

era usada para mexer alimentos ritualísticos

era usada na fervura dos alimentos mais ordinários

usada na terra era plantada antes dos alimentos

usada bolota aromatizadora pingava-se

óleo de casca de árvore ordinária na capacidade

da vênus de willendorf

que ficava ali ao uso do recinto

a vênus de willendorf era usada

dizem os especialistas

usada como socador de ervas

usada como amplificadora da pequenez

das outras vênus

todas ordinárias

usada para amaciar

carnes relações couros discussões

pois basta olhar para a vênus de willendorf

notável pequena usável

hojendia os especialistas usam

a vênus de willendorf

em suas especialidades

a vênus de willendorf jamais deixou de ser usada

Título do Site

Carla Diacov, São Bernardo do Campo, 1975. Amanhã Alguém Morre no Samba (Douda Correria, Portugal, 2015), A metáfora mais Gentil do Mundo Gentil, (Macondo Edições, Juiz de fora, 2016), Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse (Douda Correria, 2016), bater bater no yuri (livro online pela Enfermaria 6, 2017), A Menstruação de Valter Hugo Mãe (editado pelo escritor português, no projeto não comercial Casa Mãe, Portugal, 2017), Amanhã Alguém Morre no Samba (edição brasileira a ser lançada pelas Edições Macondo), Dois Pontos Pescoço X Sobreviventes (a ser lançado pela Editora Urutau)

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