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Literatura | Poesia | Fiori Esaú Ferrari
Fiori Esaú Ferrari
Nascer é encontrar-se
pra sempre em terra estranha.
O pó translúcido da memória talvez nos sujasse menos se não existisse a poesia, talvez o sol apontasse mais adiante: uma promessa, um gesto vindouro, uma premonição celeste, talvez um lugar para guardar toda nossa sorte, nosso sonho, as luminosas pontes nas quais encontramos antigas pegadas de solidão e de luz, talvez toda escrita seja um fundo de gaveta para o infinito, talvez, se não houvesse a terra, o canivete, o vento, ítaca, a poesia, talvez nem nós existíssemos. Conheçam alguns poemas de Fiori Esaú Ferrari.
Meditação
quando meu pai falava do campo de concentração
eu me deitava ao sol depois
uma ordem triste de continuar o dia
e as nuvens diziam coelhos
diziam dragões
diziam grandes cachorros de asas
diziam castelos e portais
eu reparava bem na porta dos seus olhos
eu via que um vento atravessava
a íris que o sol estava lá dentro
eu via os cavalos árabes fugindo
nos Alpes
e a invasão dos russos
sobre as flores de Praga
eu via a sagrada família
nas casas de Angola
a sagrada família
nas casas da Palestina
a sagrada família
nas casas do Araguaia
quando meu pai falava do campo de concentração
eu tinha um canivete azul
e uma promessa
colava as cantoneiras nos álbuns de fotografia
num laivo de eternidade
e amava Itapetininga
como espaço do mundo
foram me ensinar fronteiras depois
mais cortantes
mais intransponíveis
eu aprendi a empilhar
a recortar
a compartimentar a lágrima
a esperar que a primavera
atrasasse as cores
grandes máquinas de arar a terra
tratores ao fim do dia
eu aprendi a dizer como um náufrago
palavras de resgate
mensagens em garrafas
peixes abissais
que não possuíam olhos
pra não ver o horror
meu canivete azul me salvou uma vez
uma gota de sangue correu por seu cabo
e eu pensei que era assim
que deus fez o mar
quando meu pai dizia o que tinha de dizer
a chuva corria
e eu me abrigava na sua íris
debaixo do sol
A distância entre as coisas
Afastei a gravidade deste instante
com a música dos santos
que ficaram por muito tempo
arcados debaixo da abóboda celeste.
Não perceberam cometas,
não foram atravessados por partículas
místicas de asteroides distantes,
não se consumiram em parcela
que beijou a atmosfera,
corpo celeste, língua de fogo.
Um anjo foi a língua que as bruxas,
donas da invenção,
viram lamber o umbigo
da noite.
Estou sempre atrasado pra horas de alegria
e ontem
antes da tarde pôr um fim
no horizonte
as andorinhas voaram
do telhado
e se lançaram agudas
ao afeto e ao vento.
Eu me preparei pra morte
e de mãos trêmulas
descanso o livro
sobre as pernas cruzadas.
Meu cantil,
o meu canto infértil,
as alfazemas que trago no olhar,
a descrença e pó das sandálias
beatificadas,
os desastres de grandes blocos cósmicos
e seu mau agouro
sombreando os mapas que frequento,
tudo se assenhora de mim
e eu, servil,
não entendo o deslocamento
das pétalas pelo ar de outono.
Como um sino na noite,
na hora mais sozinha,
ondas e mais ondas
se desdobram feito uma rosa
que acolheu o orvalho.
Como um sino na noite,
senhor absoluto do silêncio,
eu me povoo de sal
e de tragédia.
Esse é um país de afastamentos.
Esse é um país de espaços.
O único sabor
Amar o Deus é acabar-se.
E ser ela, o vento,
quando dança.
Espaços irremediáveis do sertão
contemplando a morte do tempo,
a morte dos pêssegos mal nascidos,
a têmpera da ossatura do gado.
Amar o Deus e ser ela
uma só meditação do sexo.
A manifestação do nexo autoral
e a escolha desnecessária
da grande obra literária.
Campos selvagens,
montanhas e pastagens,
a imolação do cordeiro
e a faca sangrada a esmo.
Estou só,
a batalha,
cada métrica,
as estantes,
os vapores,
a partida
dos navios
equalizam
o desaparecimento do mito.
Quantas canções incensarão
os corpos,
a profanação do templo
e o eco místico
do pássaro que cansou de existir?
Não há o que ter Deus.
Ela.
Bicicletas ao entardecer
e o grave instante
de tocar os corpos,
de situar o verbo
no melhor verso,
de se imiscuir
nas vísceras
do fracasso da linguagem.
A argumentação de uma cidade,
diante da xícara de café,
no café Floresta,
e um sistema que mata,
que assassina
e comemora.
Eu reclamo um momento de introspecção
no quarto de minha mãe
onde a vida parou
e Itapetininga é antiga
e se resume nos pardais
de fora,
na cortina salvaguardando a existência,
nos costumes de gente velha,
o assoalho que sempre acolheu meus pés,
quando ainda pertencia à casa,
terços abissais
abraçando os beirais da cama.
Existir agora e não se saber mais depois.
Plantar
as ervas que vão crescer
e saciar à boca
o tempero
do chão.
Teremos assim o único gosto da eternidade.
Tricô
o novelo de lã
meus dedos anelos
de cobras
tecendo a terra
de nova manta
as agulhas entre as casas
coloniais da minha angústia
os azulejos brindando
histórias que não são do povo
estou a ponto de chorar o ponto
próximo da carreira
o vento fazendo vó
o vento fazendo o amor perdido
e entre os dedos eu construindo
a borda do caminho
do xale
que socorreu minha mãe
quando ela estava triste
Quiromante
O fado, conchas, cristais, seixos
ovalados, perigos pingentes, a leitura
de cartas, sortilégios entre astros,
o campo cruzado da linha mais triste da mão.
A da vida.
O menino e a poesia
Ulisses está prostrado
no chão do navio.
Qualquer dor,
a corda ainda presa aos pulsos,
em seu ouvido ecoa o canto.
Insuportável.
Depois disso,
ter astúcia ficou triste,
ter engenho ficou triste,
voltar pra Ítaca ficou triste.
O menino só precisava do vento, do sol e do quintal.
Um sítio
cheio de barcos inaugurais,
cheio dos chios dos pássaros,
cheio de vitrais escondidos por entre os galhos.
Galharia-palavra, nem sabia que não existia.
Um dia o pai leu pra ele os primeiros
versos de Dante.
Os olhos do pai
estavam o mar.
Fez a mala.
Depois disso,
ter o vento ficou triste,
ter o sol ficou triste,
voltar pro sítio ficou triste.
O menino, que só precisava do vento, do sol e do quintal,
ficou precisando de poesia.
O Sol dos Aqueus
É fácil construir um sol.
Alterne arcos e retas,
feixes de medos
e explosões tardias
daquela face,
daquela face de inverno
que não lhe sai da memória.
Um sol deve chorar com a gente,
nos acompanhar na noite
em cada rua
onde deixamos os gestos
bêbados.
É fácil cavalgar em partículas
subatômicas expelidas
com a violência do corpo
que se desfaz.
Iluminar é morrer.
Construir o sol em dobradura
é parecer um guarda-chuva
que comeu a luz
e então,
porque pintamos a aurora
no fundo do cartão escuro,
ficamos esperando assim
amanhecer.
A última estrela que se apaga
assiste os usos do dia
como quem se vai no fim da noite
fugir em faísca.
Ela guarda a luz na garupa.
E as frestas são os pomos
roubados pra festa.
Com a dobradura do sol,
sua palma vai aquecer.
Ah, vai aquecer
e as setas lançadas beijarão
o peito do domador de cavalos.
A mão da humanidade
vai estar marcada
de linhas do destino,
ora a ventania,
ora a chuva mansa,
ora a picardia
dos deuses pagãos,
ora a sua dança.
No quarto,
você, menino,
no meio das violentas ondas,
no batel, na ilha onde o amor bastou,
vai ficar imaginando
que a vida podia ter sido
boa.
Sem chão
Há um exílio na postura das aves
quando o outono começa.
No cuidado com seus ovos
diante da melancolia.
Nascer é encontrar-se
pra sempre em terra estranha.
Percebo um exílio nos ventos
de Itapetininga,
nas manifestações do sujeito
ao sentir um momento de dúvida
que lhe toma a vida
e a cor local.
Olhar é exilar-se.
Olhar o mar por um longo tempo
é exilar-se.
Olhar a floração da serra
é exilar-se.
Olhar os meandros da linguagem,
exercer a linguagem com pulso ou leveza,
exercer a linguagem com vilania ou nobreza,
exercer a linguagem com artifício pra enganar
a incongruência de existir,
o artesão mais simples é o mais complexo,
é exilar-se.
Os pássaros que começam o voo
já deixaram a sua pátria.
Nos ensinam
que qualquer ninho
é um desterro.
As palmas que bati assustaram
os passarinhos
e expulsei da tarde
meus sentimentos mais precisos.
Não reconheço o chão
e a revoada vai longe
como uma terra que se foi.
Sem chão
Há um exílio na postura das aves
quando o outono começa.
No cuidado com seus ovos
diante da melancolia.
Nascer é encontrar-se
pra sempre em terra estranha.
Percebo um exílio nos ventos
de Itapetininga,
nas manifestações do sujeito
ao sentir um momento de dúvida
que lhe toma a vida
e a cor local.
Olhar é exilar-se.
Olhar o mar por um longo tempo
é exilar-se.
Olhar a floração da serra
é exilar-se.
Olhar os meandros da linguagem,
exercer a linguagem com pulso ou leveza,
exercer a linguagem com vilania ou nobreza,
exercer a linguagem com artifício pra enganar
a incongruência de existir,
o artesão mais simples é o mais complexo,
é exilar-se.
Os pássaros que começam o voo
já deixaram a sua pátria.
Nos ensinam
que qualquer ninho
é um desterro.
As palmas que bati assustaram
os passarinhos
e expulsei da tarde
meus sentimentos mais precisos.
Não reconheço o chão
e a revoada vai longe
como uma terra que se foi.
Profecia
Eu esqueço de mim
côvados,
paisagens,
imensas pradarias,
intermináveis marcações
de terras
compondo esse país
pálido e imerso
das minhas horas.
Eu atingi a ternura
e descobri que seu toque
é cruel porque morre ao término do sol
e no fim da tarde não temos
o resgate de um ato brando,
de um gesto suave,
de um carinho antigo.
Reparto e reparo
arestas pra meia luz.
São meus maços de pétalas
que na penumbra não terão
cores.
Terão geometria e sua agonia
perfeita.
Cada ângulo, cada dor,
aquela quina.
A vida se neblina.
Eu sou dissoluto.
Estou em faces de caleidoscópio.
Esqueço de mim a unidade.
Eu feri passarinhos
pra inventar meu futuro.
Vi muitos e tristes.
A liberdade
Quando o avô morreu era uma tempestade.
A cruz no alto da igreja
tinha desaparecido,
a igreja toda
desaparecida,
manto tanto de água,
véu da torre,
o sino só como
o coração do avô.
Quando o pai morreu era uma chuva fina.
Pequenas estrelas
esqueciam de acabar,
no vão das nuvens
espiavam
e faziam a madrugada
durar pra sempre.
A renda branca
caía sobre o túmulo
e a igreja do Rosário
enchia dos negros
que a construíram.
Quando o filho morreu já não tinha chuva.
Fiori Esaú Ferrari nasceu em Itapetininga. Trouxe de lá o que pode em palavras e modos de sentir a vida. Mora em São Paulo e é professor de Literatura pela Uneafro e professor efetivo de Língua Portuguesa pelo município. Publicou pela editora Penalux seus primeiros livros: Tensão Superficial da Poesia (2016) e Meu Campo (2017).