Preparavas uma cama de folhas
no semiescuro do quarto
no momento em que outubro escorria suas águas.
Preparavas teu sono
como quem se recusa
fechar
os olhos
na margem da morte.
Imagem de Laura Makabresku
Literatura | Poesia | J.A. Castro
J. A. CASTRO
Há outras linguagens para além das palavras. Os pássaros, por exemplo, possuem um canto um pouco inquieto, ao meu ver, como se quisessem com muita força nos contar que tudo se prepara para a morte. Há quem já tenha escutado esses cantos agitados, talvez até se ferido no ouvido, ou no peito, quando o dizer se torna violento só porque ousa falar em fim, morte, ausência. No mais, sempre existe o silêncio à nossa espera: somos outonais, ramificados, temporais, somos quebradiços como folhas marrons, e afinal, sempre existe o silêncio à nossa espera.
AGOSTO
A tarde seca anuncia
flores
decapitadas
nas calçadas adormecidas de agosto.
O céu vermelho da ausência
o não regresso da chuva
o vento soprando as mutilações
das folhas
esquecidas.
O peso do voo de um pássaro
levando no bico
os vergalhões do exílio
e as recordações
afogadas
num oceano de morfina e silêncio.
***
CÉU CINZA
Preparavas uma cama de folhas
no semiescuro do quarto
no momento em que outubro escorria suas águas.
Preparavas teu sono
como quem se recusa
fechar
os olhos
na margem da morte.
Por fim, deitaste sobre esse leito
melancólica
a olhar o mundo pelas incertezas do sonho
a ouvir o lamento de um pássaro, distante:
céu cinza
céu cinza.
***
CHUVOSO
O cheiro da urina infância esfumaçada na memória
como uma névoa
no colchão velho amarelado no quarto
de quando a casa era pequena e úmida.
Em dezembro ainda chove
e a água escorre no telhado como uma lágrima estarrecida
no momento em que as palavras faltam.
E é difícil falar.
E é difícil descrever.
Havia lodo nos muros brancos caiados
e como um náufrago nas rasas poças do quintal
brincava
de ser o mar
e acreditava
ser inteiro mar.
***
DEMOLIÇÕES
Os martelos estão fartos
das demolições
e da fúria do Sol sob os pós acumulados
nos cantos
em que ninguém mais nota
que todos os espaços
são
antecipações de ausências.
***
FRAGMENTOS
Retalhos de colchas noturnas
recolhidos
na outra margem do frio.
O Sol degela
pactos
da noite
congelados desde o último sonho.
Menos o meu apego
que continua intacto
à imobilidade dos dias
à minha própria imobilidade.
Deve haver algum recado
em algum canto da casa, escondido.
Deve haver algum fragmento seu
nas superfícies dos objetos que você tocava.
Lá fora
indiferente à minha procura
o Sol degela
os últimos resquícios da noite.
***
INSTABILIDADES
O desamparo dos pássaros sob a chuva
o despreparo das folhas
o descaso da noite para com as sombras
o silêncio
que ocupa o espaço após a violência cometida.
O silêncio das mandíbulas
após o curto tempo do doce das maças.
O despertar e o sonho
o sono e o pesadelo.
***
SOMBRAS
Noites não me agonizam
nem a escuridão repleta
nos quartos
nos corredores.
Apagar as luzes é como fechar os olhos
e te imaginar sorrindo
entardecendo no terraço.
O que me estremece é o fulgor do dia
inundando a casa
iluminando os objetos que ficaram
as roupas
os frascos dos perfumes
a escova com uns fios de cabelo que restaram.
O que me atormenta é essa claridade sobre a cama
sobre o branco dos lençóis que cobriam
nossos ânimos e dormências
essa luminosidade
que vem de fora, íngreme e escassa
empalidecendo os copos empoeirados no armário
projetando os contornos dos pilares sobre o piso
e as sombras
as sombras
das folhas
sobre os muros.
***
AGASALHO
Meu agasalho
é o que sobrou de minha mãe:
o apego
ao frio
das coisas de neblina
que eu brincava
de estar nas nuvens.
Não um frio qualquer
de fragilidade, medo
ou de quem busca a fuga
mas um frio que atinge o silêncio
que os objetos
exalam
em suas recordações.
J. A. Castro nasceu em 1983 na capital São Paulo, viveu a infância na cidade mineira de São Sebastião do Paraíso e atualmente reside em Ribeirão Preto – SP com a esposa.
É graduado em História pela Universidade Estadual Paulista, mas não deixou de exercer a profissão que o pai ensinou ainda menino, a topografia, setor da construção civil.
O gosto pela poesia surgiu na universidade, na qual, desde então, vem lendo e estudando poetas clássicos e contemporâneos.
O interesse pela escrita surgiu junto com o da leitura e sonha reunir seus poemas em um livro, ainda não publicado.